Eu quero partilhar a vida boa com vocês: pela democratização das escutas nos streamings.

 

Por Arthus Fochi.


A conversa hoje é séria. De antemão aviso que este texto é destinado a todos que trabalham ou não com música, ouvintes, produtores ou não, enfim, a todos que possam tirar da linha lógica aqui apresentada alguma analogia com a sua área de atuação ou trabalho. Vou expor algumas reflexões sobre o mercado da música e a conivência de alguns artistas/produtores/curadores que contribuem para um sistema de desigualdade e que, no decorrer desta experiência da música digital legalizada, provoca um esvaziamento cultural na sociedade - falta de perspectiva objeto/tempo, distanciamento entre fazer artístico e sociedade. Espero que ao final da leitura vocês compartilhem.

Eu, Arthus Fochi, desde que tinha doze anos comecei a estudar música e a partir dos quinze passei a me interessar por uma equação simples: compor, gravar, distribuir. Peguei o final de uma prática comum entre os apaixonados por música: a troca de fitas cassete e discos. Vivia na Região Dos Lagos no Rio de Janeiro, e o acesso a certas discussões e posições políticas e filosóficas vinha através da pequena cena local de Punk/Hardcore.

A chamada “pirataria” era algo comum na internet discada. No começo dos anos 2000, alguns poucos, que tinham acesso à internet, usavam a madrugada para baixar álbuns novos, muitos sem saber do que se tratava. Buscava-se por gênero e pelo gosto de usuários já conhecidos nas plataformas peer-to-peer como SoulSeek. A passagem desse modelo (que anos depois eu saberia tratar-se de pirataria) ao que vivemos hoje, do streaming legalizado, aconteceu de forma muito rápida. My Space, Reverbnation, SoundCloud, Bandcamp, todas essas plataformas surgiram em meio ao processo de profissionalização do próprio trabalho artístico de uma geração.

Hoje, depois de sete anos que o Spotify desembarcou no Brasil, muitos artistas não sabem como funcionam o mercado, as diferenças entre uma agregadora e uma distribuidora, e o que fazer para não apenas investir um longo período da vida em um trabalho que vai apenas entrar no vácuo da famosa plataforma de streaming.

Vou direto ao ponto da questão: o Spotify é atualmente o serviço de streaming mais ouvido no país. Ele consolidou um mercado baseado em playlists que funciona da seguinte forma: playlists editorias (supostamente feita por curadores), playlists algorítmicas (que distribuem sua música para mais usuários dependendo da performance/taxa de skip/ compartilhamento) e através de playlists dos próprios assinantes (que montam suas listas a partir do gosto pessoal). Dito isso, exponho aqui uma pequena pesquisa que fiz de alguns artistas em playlists voltadas para o que comumente foi chamado de MPB e NOVA MPB. Imagino que esse cenário seja igual em outros estilos e gêneros musicais.

Em apenas cinco playlists editoriais do Spotify:

  •  AnaVitoria aparece 15 vezes
  • Rubel aparece 12 vezes
  • Tiago Iorc aparece 9 vezes 
  • Caetano Veloso aparece 10 vezes 
  • Gilberto Gil aparece 12 vezes

A lista de artistas que aparecem com mais de uma música por playlist é maior. Esses números, além de representar a ingerência e monopólio das Majors nas plataformas, representam também um esvaziamento cultural e narrativo nesses espaços. É preciso levar em conta que escutar música é um hábito cultural e que o mercado forja esse hábito. Estamos falando de milhões de ouvintes. Atualmente, esse hábito é forjado através da escuta das playlists. Elas dão prestígio, status aos que ali estão. Mostram ao ouvinte médio “aquilo que tem de melhor” no momento para ele ouvir. Porém, há dezenas dessas músicas que estão lá há muitos meses, algumas há mais de ano ocupando esses espaços. Outras são músicas que estão sendo tocadas há décadas nas rádios.

Trago esta reflexão pois, estes artistas por já atingirem grande público (artistas do mainstream e pouquíssimos intermediários) já possuem distribuição algorítmica abrangente e também milhares de inclusões em playlists de usuários e de empresas (Sim, rolava um boato que o Spotify queria punir quem pagasse por vagas alugadas em playlists, porém, todas as majors possuem empresas de playlists com milhares de seguidores - onde só colocam os artistas lançados pelas próprias majors. A Filtr da Sony, Topsify da Warner, Diverge da OneRPM, Digster da Universal, etc). Incrível ironia, não acham?

Além desse acesso digital, em épocas pré-pandêmicas esses artistas que ocupam frequentemente os Lineups de grandes festivais, com bons cachês, possuem agenda anual estabelecida, entrada através de sincronização (tv, novela, série, propaganda, etc), arrecadação de direitos conexos e autorais em rádios, venda de seus produtos físicos, enfim, todas as etapas de um trabalho artístico bem sucedido.

Do outro lado, para a grande maioria a internet se tornou o único lugar para apresentar e fazer escoar o trabalho. Já que os serviços de streaming pagam tão pouco (menos de um centavo por escuta, levando em consideração porcentagens para agregadoras, distribuidoras), por que não democratizar as produções e fazer com que mais artistas apareçam para o público descobrir? Por que não tornar o trabalho de mais pessoas algo sustentável, e reduzir a desigualdade e a concentração de renda no setor artístico? E principalmente, por quê não dar voz a outras idéias, outros comportamentos, outras narrativas? A solução seria criar mais playlists?

Artistas como Caetano, Milton e Gil, por exemplo, por mais que sejam clássicos, artistas de indiscutível valor, são ouvidos à exaustão por décadas. E sinceramente, longe de acreditar que as idéias caducam, mas para mim eles não comunicam a vastidão do novo do mundo, nem nas estéticas, nem na poesia. Eu, pessoalmente, quero conhecer as novidades dos que crescem comigo, que compartilham das lutas e angústias do agora, assim como eles queriam em sua época. A chamada NOVA MPB é dócil, parece que não tem crise no Brasil dela.

Acho que muita gente boa quer "partilhar essa vida boa" com eles, mas essa gente precisa de espaço, de escuta, para mostrar o que pensa e o que sente. A cultura precisa de movimento. Os artistas deveriam pensar em como contribuem com seus próprios trabalhos nos monopólios que são formados. Como contribuem nessa competição medonha que se tornou o mercado musical. No que diz respeito às plataformas já passou da hora de entender que a conta não está fechando em vários pedaços do papel.


Arthus Fochi é compositor, produtor, poeta e tem 4 álbuns e 3 livros lançados.

Comentários

  1. Perfeito meu caro tá na hora de fazer uma cooperativa, em fundar uma plataforma alternativa democrática e justa para com os artistas e suas obras!!

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